17 de dezembro de 2010

Um Veterinário como nós...


 Canil de Cantanhede

 
Adopção ou morte. É essa a sentença que paira sobre as centenas de cães que vão passando pelo Centro de Recolha Animal de Cantanhede. Apesar de ser um crime punido por lei, o abandono de animais de companhia tem vindo a aumentar nos últimos anos. A crise pode ajudar a explicar, mas há quem acredite que a semente do problema reside na própria mentalidade do povo português. 

Grandes e pequenos, pretos, brancos ou “café-com-leite”. De pêlo comprido ou curto, cerdoso ou macio. No Centro de Recolha Animal de Cantanhede (CRAC) há exemplares para todos os gostos, companheiros de quatro patas à espera de serem adoptados. A funcionar desde 2004, ali “as torneiras não são de ouro” mas as condições estão mais que reunidas para proporcionar uma estadia digna aos cães recolhidos, como explica ao AuriNegra Idílio Cravo, Médico Veterinário Municipal e responsável pelo Centro. 

“Este Canil surgiu graças à boa vontade do Executivo Camarário da altura e tem o mínimo de condições de bem-estar. Orgulho-me nisso, pois sou um homem exigente. Naturalmente gostaria que fosse cada vez melhor, até porque em 2004 fez-se a pensar numa certa dimensão e hoje está a tornar-se um canil pequeno para a realidade que enfrentamos”, confessa. A captura de animais já era feita antes dessa data, as condições para acondicionar os animais é que não seriam as ideais. 

“O Decreto-Lei n.o 314 de 2004 diz que as Câmaras são responsáveis pelos cães vadios ou errantes que se encontrem na via pública ou nos estabelecimentos públicos. É, portanto, uma obrigação por parte de todos os Municípios deste País, apesar de nem todos a cumprirem. As matilhas de cães agressivos que atacam galinheiros e as cadelas com o cio ou grávidas são os casos a que temos que estar mais atentos”. 

O Centro não aceita animais entregues “em mãos”, a não ser que estes representem, comprovadamente, um perigo ou sejam portadores de uma doença irreversível, estejam em sofrimento ou possam contaminar seres humanos, até porque o veterinário considera que isso daria ao Centro “uma imagem de matadouro, uma imagem horrível”. Por isso, os inquilinos do Canil Municipal são “animais que foram capturados, depois são analisados clinicamente, a fim de despistar uma possível doença. Se for um cão extremamente perigoso ou de temperamento agressivo, é colocado numa das duas salas de sequestro, para que possam ser dominados em segurança”. 

Depois da captura e despistagem do estado de saúde dos animais, é preciso respeitar alguns prazos impostos por lei: “Há um prazo de oito dias úteis que temos que respeitar antes de podermos dar o cão para adopção. No entanto, são todos publicitados na página do CRAC e no facebook, até para que alguém que esteja à procura de um cão que possa ter desaparecido tenha oportunidade de o encontrar. Depois são colocados para adopção aqueles que eu vejo que têm potencialidades para tal. Não vou põr para adopção um cão desdentado com dez anos. Tem que ser um cão saudável, calmo”.

 A captura marca o início de um proceso mais ou menos demorado que pode ou não ter um final feliz. Segundo o médico veterinário, a taxa de adopção dos animais recolhidos “anda na casa dos 16 por cento do volume total de adultos e cachorros. É evidente que as pessoas procuram sobretudo as ninhadas, adoptar cães adultos não é uma situação normal, e preferem os de raça, para mostrar à sociedade que também têm um caniche ou um husky”. E os que não têm pedrigee, são menos cães que os outros? “As pessoas não se preocupam muito com os ‘vira-latas’, como dizem os brasileiros, os indeterminados. A adopção que presenciou hoje é muito pouco comum de acontecer “[ver caixa].

Lei, mas pouco
Se os animais pudessem escolher os seus donos, certamente não optariam por um que os viesse a abandonar. A fim de prevenir essa situação e de poupar aos animais, muitas vezes já traumatizados ou deprimidos pela perda da “família”, um novo processo penoso, Idílio Cravo tem certos cuidados na hora de mandar um dos animais a seu cargo para um novo lar.
“Converso com as pessoas, tento perceber que tipo de cão procuram, como é que vivem, se têm um apartamento ou um quintal. Se querem levar um Serra da Estrela e vivem num apartamento, à partida eu não dou o cão, até porque depois não o aceito de volta. Já tive uma história de uma senhora que quis adoptar um cão e no dia seguinte estava cá a devolvê-lo”.

Como quem devolve um casaco que não assenta bem, ou uma almofada que não combina com os cortinados, esquecendo-se que é de um ser vivo que se trata, que sente e sofre: “Eu digo no site do Canil que as pessoas não devem ir pela emoção porque o cão é um ser vivo que sai do seu mundo e é acolhido por uma família humana, que ele considera uma matilha, que ele respeita e que entende como iguais. Eles sofrem muito quando são abandonados, há cães com depressões. As pessoas vão pelo que é bonito, por impulso. É preciso pensar se há tempo, dinheiro e vontade”.

E disposição para amá-lo, como se de um igual se tratasse: “Aprendemos que o cão é o melhor amigo do homem, contudo é preciso que sejamos amigos dele. As pessoas pensam que é um boneco que ali está, que não tem direitos. Tem a sua personalidade e as suas necessidades, é isso que as pessoas às vezes não compreendem. O cão não é um frigorífico velho, um bem de que nos podemos ver livres”.

Desde 2003 que a Lei portuguesa obriga todos os cães e gatos entre os três e os seis meses de idade, vendidos em lojas, usados em competições e concursos ou que sejam de raças consideradas perigosas a serem portadores de microchip. Mais, desde Junho de 2008 a Lei passou a abranger todos os cães nascidos depois dessa data. “O problema está no não cumprimento da Lei e na falta de fiscalização, a que se junta o facto de as Juntas de Freguesia não introduzirem no SICAFE [Serviço de Identificação Canina e Felina] os dados do animal. Por isso é que em 283 cães capturados apenas 47 tinham chip e só oito tinham dono, por assim dizer”.

Enquanto o cumprimento da legislação não for imposto e fiscalizado, continuarão a passar impunes os crimes de abandono de animal de companhia, actualmente sancionados com coima de valor não inferior a 500 euros. Cães e gatos continuarão a ser desrespeitados e utilizados pelos seus donos ao sabor das suas conveniências. Mais do que uma questão legal, esta é uma questão moral, de consciência ou da falta dela. Se pretende adoptar um animal ou saber mais sobre o Centro de Recolha Animal de Cantanhede visite www.cm-cantanhede.pt/crac. | Filipa do Carmo

Crise económica, crise de valores
Idílio Cravo é responsável pelo CRAC desde a primeira hora. Com o passar dos anos tem registado um aumento no número de cães recolhidos, o que reflecte um crescimento no número de exemplares que são deixados à sua sorte, abandonados: “Não tenho dúvidas que é um fenómeno ligado à economia. De há três anos a esta parte começaram a aparecer cães de grande porte, o que coincide com os primeiros sinais desta crise económica”.

Um cão é um amigo e um companheiro, é um membro da família que, como qualquer outro, acarreta algumas despesas: “Os cães de raça grande tendem a dar mais despesa, nomeadamente em termos alimentares. Também os cães mais pequenos mas de luxo, como os caniches, yorkshires e afins, são cães que dão muita despesa em termos de higiene e manutenção do pêlo. Claro que haverá outros fenómenos que contribuem para o abandono dos animais, como situações de divórcio, ou o comprar um cachorro para o filho, depois ele crescer e dar cabo dos bibelôs no apartamento, há o fenómeno das férias, dos fins-de-semana e o fenómeno do ‘agora não me apetece’”. No entanto, a necessidade de efectuar cortes na despesa mensal é, no entender do Veterinário Municipal, uma das principais razões de abandono.

Os que não têm a sorte de se mudarem de “patas e bagagens” para um novo lar, com um novo dono que os mime e respeite, ou de serem aceites por uma união zoófila, enfrentam, inevitavelmente, a morte: “Aí cumpre-se a lei, pratica-se eutanásia. Acredite que é o maior sofrimento que um médico veterinário pode ter, porque ele foi preparado para salvar. Costumo dizer que na morte também há dignidade, e aqui há mesmo. São animais que chegam a ficar cá alguns meses, assim eu tenha lugar para eles, sempre na esperança de que venha alguém e os leve”.

Até que não dá mais para esperar pelo gesto altruísta que os salve do inevitável: “Começo sempre pelos mais velhos ou doentes. Infelizmente não há verbas para os manter indefinidamente. Eles são sedados e é-lhes injectada uma dose letal de anestésico, não padecem de sofrimento algum. Por esse motivo não me ligo muito aos cães, até porque quando ligo, ou eles são adoptados, ou vão para minha casa, como já aconteceu por quatro vezes. Se há um fitar de olhos com o animal, já não consigo fazer nada”. Se ao menos os donos fitassem os olhos dos seus cães antes de os abandonarem…

Afinal, há cães com sorte
Licínia e Maria da Piedade Marques, mãe e filha de Ourentã, chegam ao CRAC ainda não são 10h00. De trela na mão, vão em direcção ao “quarto” n.º 3, onde Lulu, uma mistura de caniche com uma outra raça, aguarda impacientemente. Já havia sido visitado pelas simpáticas senhoras, reconhece-lhes a voz e acredita que pode ser o seu dia de sorte. “A semana passada tínhamos vindo ver os cãezinhos que aqui havia, a minha mãe tem um muito velhinho, com 15 anos, e tinha outro com dez, que morreu vítima de cancro há pouco tempo”, conta Licínia, entusiasmada.

Lulu, o pequenote de olhos grandes e expressivos e focinho meigo, já não é nenhum cachorrinho. Tem três anos, mas ainda assim foi ele o escolhido para acompanhar Maria Piedade e Licínia até Ourentã, onde será o mais recente membro da família. Difícil foi mesmo escolher, perante os olhares suplicantes dos restantes inquilinos do Centro de Recolha. “Há tantos a precisar de um dono, acho que é uma doidice andar a comprar cães tão caros”. Lulu dá a sua companhia e fidelidade, Maria da Piedade garante o carinho e a atenção que o novo membro da família merece.

Numa manhã em cheio no CRAC, as adopções não se ficaram por aí. A Lulu e aos dois Serra da Estrela que haviam sido levados por volta das 9h00, juntam-se os dois cachorrinhos de uma ninhada recente que Luís Brandão, da Pocariça, já “reservou”. “Tenho tido sempre cães, mas morreu-me um no sábado e decidi vir procurar substituto”. Não encontrou um, mas dois, irmão e irmã.

Já teve cães de raça, do Serra da Estrela ao Cão de Fila de S. Miguel, mas desta vez optou por um “anónimo”. “É difícil escolher, claro, mas não dá para levar todos e lá acaba por haver uns que têm mais sorte que outros, como em tudo na vida”, atira o futuro “pai adoptivo” bem-humorado. Ainda sem nomes atribuídos, “é possível que o macho se venha a chamar Chico, já que parece que eles são ali das Franciscas”. Assume que os cães dão despesa, mas “compensam em companhia e noutras coisas. Há outras coisas que dão mais despesa e que não dão compensações”.

Amor incondicional
Ricardo Gomes é de Abrunheira, concelho de Montemo-o-Velho. No final de Agosto desapareceram os dois Cães de Água que possuía, similares ao que agora se passeia pela Casa Branca. Naturalmente, procurou por eles um pouco por toda a parte, nos locais por onde costumavam passear: “Procurei durante dias e dias, até chegar a um ponto em que pensei que já não valesse a pena. Até que encontrei na internet inúmeras referências ao Canil de Cantanhede e decidi passar por cá, mais por descargo de consciência”.

Tinha passado um mês e meio desde o desaparecimento de Boris e Pelé e a esperança de os encontrar era quase nula: “Quando aqui passei estava cá um, emocionei-me muito. Depois descobri que o outro tinha sido adoptado, não conhecia as leis, pensei que não o poderia reaver”. Conseguiu o contacto da pessoa que tinha adoptado um dos seus cães mas acabou por se ver confrontado com um dos poucos cenários que não equacionara: “A senhora não se mostrou receptiva, apesar de só ter adoptado o Pelé há seis dias. Mostrei-lhe fotografias para tentar sensibilizá-la mas não conseguia demovê-la da sua decisão. No entanto não desisti e por 500 euros acabei por reaver o meu cão”.

Apesar das dificuldades por que passou, Ricardo está feliz por ter recuperado o seu amigo e é um exemplo acabado do amor incondicional que se pode nutrir por um animal de companhia. Apenas lamenta “que algumas pessoas se aproveitem destas situações. Mais, que haja pessoas que venham buscar os cães para depois os terem em condições precárias”. Por vezes, a realidade é realmente mais estranha que a ficção.


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"A compaixão pelos animais está intimamente ligada a bondade de carácter,

e pode ser seguramente afirmado que quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem."

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Arthur Schopenhauer